quarta-feira, fevereiro 16, 2005

O passeio inesperado


Untitled Night Painting by Wayne Jiang

Quando parece que já nos decidimos a ficar por casa à noite, tendo posto o blusão caseiro e estamos sentados com o jantar à frente e uma vela a iluminar os afazeres, ou o jogo, com que nos vamos entreter antes de ir para a cama, quando o tempo lá fora está tão mau que o mais natural é ficarmos em casa, e quando já estamos sentados e calados há tanto tempo que a nossa saída seria para todos uma surpresa, quando, para além do mais, as escadas não estão iluminadas e a porta de frente já está trancada, e apesar de tudo isso somos impelidos por um impulso súbito a levantarmo-nos, a trocar de blusão, a vestirmo-nos à pressa para ir à rua, a explicarmos que precisamos de sair, a despedir-nos com algumas palavras breves e a sairmos, batendo com a porta com mais ou menos força dependendo da reacção das pessoas que ficarem em casa, e quando nos vemos na rua uma vez mais, com os membros a balançar mais livremente que nunca, em resposta à liberdade inesperada que lhe damos, quando, em resultado desta opção categórica, sentimos concentradas em nós todas as potencialidades de uma tal acção, quando nos apercebemos claramente de que a nossa força é mais do que suficiente para conseguirmos operar sem esforço a mais súbita das mudanças e saber lidar com ela, quando vamos caminhando pelas ruas imbuídos deste espírito – então, por uma noite, livrámo-nos completamente da família, que se esvai insubstancial, enquanto nós, uma figura firme delineada a preto, damos palmadas na coxa, assumimos a nossa real estatura.
Ainda melhor será se, a uma hora tão tardia, nos decidimos a procurar um amigo para ver como é que ele está.

Franz Kafka