domingo, dezembro 31, 2006

Electrónicas (3)

Nos tempos que correm, Herbert tem sido o nome mais requisitado para defender um estilo que em termos criativos parecia ter estagnado por completo: o House e seus afins... O nome desse criador maior servia assim, por si só, para justificar a existência do género. Agora que Herbert tem, cada vez mais, andado a dedicar-se à exploração de sonoridades acústicas; outros nomes - que têm vindo a ameaçar reclamar os méritos do território -, parecem estar a afirmar-se definitivamente: Isolée será a caso mais vincado disso; Luomo será o nome com uma instigação mais direccionada para dar bom nome ao género no seu sentido mais convencional; e Matmos, com a sua investida numa sonoridade mais acessível, acabam também por estabelecer coordenadas no território.
No caso de Isolée, 2006 não conta propriamente com novidades, mas sim com reedições dos seus primeiros trabalhos, nomeadamente o seminal “Rest” e uma colecção de temas editados em vinil entre 1997 e 2003, “Western Store”. Servem assim estas duas obras para ditar que o nome por detrás do projecto, Rajko Müller, não vive exclusivamente de “We are monster”, muito pelo contrário; e completam um todo que serve como referência na construção daquilo que se entende por capacidade de um autor em criar possibilidades sonoras modernas. Não tanto tendo como base esta última ideia, mas sim a inspiração dos resultados que dela advêm, os Luomo pegam nas pontas soltas do Deephouse e dizem que não... que não é um meio parco de soluções; e que, com sensibilidade, que se quer assertiva por excelência, podem-se conceber obras genuínas mesmo trabalhando exercícios de estilo. Os grandes criadores são assim; conseguem apropriar-se de resultados de ideias de outros e torná-los seus, e “Paper Tigers” é exactamente isso - por isso não se estranhe que, por exemplo, “Bodily Functions” de Herbert nos venha à memória durante a audição do disco –; para além de ser um obra que emana calor por todos os elementos que a constituem. Por fim, resta então falar dessa obra altamente enriquecedora que é “The Rose Has Teeth In The Mouth Of A Beast” de Matmos. Esta obra tem muito para dizer e que se lhe diga. É enorme nos seus propósitos – traçar um perfil musical biográfico de grandes personalidades que são fontes de inspiração do duo, tais como Patrícia Highsmith, William Burroughs ou Ludwig Wittgenstein -, e enorme no resultado final. O objecto físico é, por si só, magnífico; trás consigo retratos individuais de cada um dos autores homenageados em cada uma das canções, feitos por alguns dos artistas plásticos mais importantes da actualidade – um meio que serve para que, também a estes, Matmos prestem o seu tributo -, e depois vem a música que ainda trás consigo uma série de nomes de craveira que se juntaram para cooperar com o duo: Björk, Antony e Kronos Quartet; são alguns dos que se podem encontrar. O resultado sonoro é soberbo. Pode-se dançar com ritmos demarcados por grasnar de patos, melodias criadas a partir do desabrochar de rosas ou criadas a partir de outros sons menos convencionais. O ouvinte perceberia isso se não soubesse que os Matmos fazem disso a sua matéria prima? Provavelmente não, e é por isso que este álbum perde todo o peso da noção conceptual que se lhe poderia atribuir, para que no fim da sua audição se entenda o porque de ter sido aquele que mais gozo deu a fazer ao duo.

"Rest" de Isolée (9/10).
“Western Store” de Isolée (9/10).
“Paper Tigers” de Luomo (8,5/10).
“The Rose Has Teeth In The Mouth Of A Beast” de Matmos (9,5/10).



"Rest" by Isolée.
(2006 / Playhouse)


“Western Store” by Isolée.
(2006 / Playhouse)


“Paper Tigers” by Luomo.
(2006 / Huume)


“The Rose Has Teeth In The Mouth Of A Beast” by Matmos.
(2006 / Matador Records)

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Electrónicas (2)

Falou-se muito de Dubstep no decorrer do ano de 2006, e com razões para isso. Este é um género que já andava a ameaçar afirmar-se à algum tempo, e conseguiu isso graças a lançamentos dos álbuns de Burial, Kode9 & the Spaceape e Skream. Todos eles são respeitados no meio, agora, para além disso, começam a ser respeitados pelo público em geral; até porque quem viveu em pleno a cena electrónica dos anos 90, em particular o Trip-hop, Dub ou Drum & Bass, pode encontrar neste género um seguidor digno dos caminhos trilhados pelos mentores dos géneros anteriores, sendo que o Dubstep será uma espécie de sequência lógica do que por aí há para continuar a desbravar. E só mesmo nos álbuns dos artistas agora em questão é que se pode vislumbrar uma descendência digna de álbuns como “Blue Lines” dos Massive Attack ou “Pré-Millenium Tension” de Tricky, duas obras monumentais que muito influenciaram a música da última década e que até à data não teriam ainda tido alguém capaz de evocar dignamente as paisagens aí descritas.
No entanto nenhum dos artistas de quem agora se escreve se colam mais a géneros propriamente ditos do que à exploração de espaços de desenvolvimento do seu próprio carácter. Existe por aqui a declaração de individualidades suficientemente distintas entre si; e a exploração de uma Folk diluída em electrónicas narcórticas é um recurso vasto para que cada um deles possa vincar a sua personalidade. Porém os espaços desoladamente paranóicos e um quanto melancólicos é algo que todos partilham (sobretudo os Burial e Kode9 & the Spaceape), assim como o incitamento a uma sonolência rítmica. Esta última característica parece querer deixar de restringir o género apenas aos clubes onde a cena é vivida para que agora possa ser apreciada em qualquer casa de quem a acolhe. Para finalizar, e para que não hajam dúvidas, neste espaço afirma-se que são os lançamentos mais importantes do ano. (9,5/10 para todos eles)

"Burial" by Burial.
(2006 / Hyperdub)



"Kode9 & the Spaceape" by Kode9 & the Spaceape.
(2006 / Hyperdub)



"Skream!" by Skream.
(2006 / Tempa)

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Electrónicas (1)

Em 2006 a música electrónica parece ter ganhado um novo fôlego. Um considerável número de bons discos, que se podem inserir no género, foram lançados no decorrer do ano, sendo que, é justamente aqui onde se podem encontrar alguns dos lançamentos mais importantes do ano quando se pensa na responsabilidade da música em explorar novos territórios estilísticos e experimentar novos meios ou métodos de criação. Por outro lado, houve ainda gente no meio capaz de reafirmar a sua criatividade independentemente das condições anteriores. Responsáveis por tudo isso foram grupos como Burial, Herbert, Isolée, The Knife, Kode9 & the Spaceape, Luomo, Matmos, Mouse On Mars, Post Industrial Boys, Quantic, Shogun Kunitoki, Skream, Spektrum e Wise In Time.
Aqui, já se escreveu sobre Herbert e Wise In Time; de Mouse On Mars, aqui; em seguida escreve-se – com todo o gosto – sobre “Fun At The Gymkhana Club”, o álbum dos Spektrum.

“Fun At The Gymkhana Club” by Spektrum.

(2006 / Nonstop)

De facto, é com grande entusiasmo que se destaca novamente os Spektrum, aqui, neste espaço. Acreditou-se neles quando lançaram o seu primeiro álbum em 2004, “Enter... the spektrum”; tudo porque uma faixa como “Freefall” não deixou que o grupo passasse desapercebido, sendo a responsável pela descoberta de um magnífico álbum. Em “Fun At The Gymkhana Club” existe “Don’t Be Shy”; que tem todas as características contagiantes de “Freefall”. Aliás, após ouvir o presente álbum, aquilo que se poderá pensar para alegar em seu favor são precisamente os mesmos argumentos do anterior, sem que isso o desvalorize. Isso porque os Spektrum continuam cheios de vitalidade e energia a nível criativo... e a impressionar. Mesmo que o presente álbum seja mais polido que o anterior não se perdeu nenhuma afirmação das potencialidades que o grupo tem para criar novas sonoridades urbanas excepcionais.
Lola Olafisoye continua a ser uma vocalista e interprete de canções perturbante (ela é grandiosa – muito - com todas as suas peculiaridades extravagantes), e os restantes elementos do grupo, responsáveis pela maquinaria instrumental, apenas limaram algumas arestas do anterior diamante em bruto, sendo que neste álbum se sente invariavelmente um maior investimento na aproximação ao formato de canção propriamente dita. Tudo isso é bom e nada que chegue para diminuir o disco. Qualquer crítica ao álbum mais facilmente irá tornar-se obsoleta que o próprio; por isso o melhor mesmo será ouvi-lo. (10/10)

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Elas... (3)

Em seguida fica mais um olhar sobre alguns dos discos que se considera que merecem destaque no ano de 2006, onde Elas são a figura central. As suas vozes, atitude, talento e originalidade, assim o impõem; e gosta-se que assim o seja. Lisa Germano, Susanna & the Magical Orchestra e Ursula Rucker encerram assim a secção que se lhes dedica.

“In The Maybe World” by Lisa Germano.

(2006 / Young God Records)

“In The Maybe World” é mais um belo álbum de Lisa Germano, que sucede o não menos belo “Lullaby For Liquid Pig”; podendo-se até considerar um descendente directo desse. Por conseguinte poderá acarretar o mesmo problema que o seu antecessor: passar desapercebido e não se abonar com o respectivo afecto que merece, negligenciando-se uma vez mais uma artista de facto talentosa. A música de Lisa Germano é inteligente, por excelência cerebral, sendo o presente álbum também um reflexo disso. Num registo onde se confunde ultra-realismo com fantasia, sensualidade com drama, entre outros conceitos limite e opostos; a voz de Lisa Germano apresenta-se perfeitamente focada nos seus propósitos, sendo que, a música que a acompanha, é também um elemento vital para os alcançar. (9/10)

“Melody Mountain” by Susanna & the Magical Orchestra.

(2006 / Rune Grammofon)

Susanna & the Magical Orchestra apresentam em 2006 uma obra que segue a brilhante linhagem de discos como “The Covers Record” de Cat Power, “Cover Magazine” de Giant Sand, “People Are Strange” de Stina Nordenstam ou “Strange Little Girls” de Tori Amos. Ou seja, álbuns onde as canções que eram de outros deixam de o ser para passarem a pertencer àqueles que decidiram apoderar-se delas; sem no entanto se faltar ao respeito do original, mesmo que ele se apresente completamente irreconhecível. E vê-se assim surgir um mote de versões de canções mais ou menos conhecidas. Os originais ganham um novo fôlego graças a quem agora as interpreta e que deixa neles a sua patente registada. “Melody Mountain” corre o risco de parecer aborrecido devido ao tom estável que adopta do inicio ao fim, no entanto também corre o risco de se tornar justamente o oposto, podendo-se assim sair plenamente gratificado da sua audição. (8/10)

“Ma At Mama” by Ursula Rucker.

(2006 / !K7)

Ursula Rucker continua a ter muito para dizer e continua a saber como dizer. Com um estilo muito próprio fala-nos sobre o estado da contemporaneidade de uma cultura negra que cada vez mais parece andar a perder-se justamente naquilo tem vindo a reivindicar para si. Mordas, como se exige do Hip-Hop ou do Rap, ela reclama para si eficientemente as características desses estilos para que, em formato de Spoken Word, possa proclamar mensagens politicas acompanhadas por uma secção musical rica em melodias estimulantes e ritmos hipnóticos; havendo ainda a oportunidade para prestar homenagem a uma série de brilhantes entidades que ajudaram a definir uma comunidade artística e cultural que têm agora uma vasta influencia no mundo ocidental. Ursula Rucker continua cheia de vitalidade e sem receio algum de tocar na ferida quando é necessário, sendo “Ma At Mama” um exemplo notável disso. (9/10)

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Elas... (2)

Existem álbuns que parecem trazer consigo todo o encanto perdido de uma cultura. Obras que conseguem a proeza de rejuvenescer géneros aparentemente esmorecidos a nível criativo, com toda a solenidade que se exige. Exemplo disso são “5:55” de Charlotte Gainsbourg, “A Primitive Guide To... Being There” de Jhelisa e “Springtime Can Kill You” de Jolie Holland; escreva-se então sobre eles...

“A Primitive Guide To... Being There” by Jhelisa.

(2006 / Infracom!)

Jhelisa consegue numa assentada revolver as raízes da música afro-americana e criar um prodigiosos álbum gospel, primoroso em melodias delicadas acompanhadas por arranjos vocais extraordinários. Espantoso, a nível melódico (no seu todo), é justamente a proeza de se ter obtido um sofisticado resultado final sem nunca se perder de vista as tradições que estiveram na sua origem. Começou por ser gravado em Nova Orleães, no entanto um fenómeno designado Katrina, não permitiu que as gravações fossem aí terminadas. Como consequência do sucedido, Jhelisa acaba ainda por reflectir na obra a necessidade da recriação de uma integridade comunitária numa cidade que luta para ir de encontro à áurea alegre que a caracterizava... Uma obra humana sobre humanidade. (9/10)

“5:55” by Charlotte Gainsbourg.

(2006 / Because Music)

Em “5:55” encena-se o imaginário de uma cultura francesa tal como esta tem chegado ao resto do mundo nas últimas décadas. Uma cultura que tem na música como responsáveis nomes como os de Air, que por sua vez têm como fonte de inspiração o incontornável ícone do país que é Serge Gainsbourg - culpado pela disseminação de um charme bandido, a emanar fetiches sexuais por tudo quanto é poros num ambiente onde o álcool é fundamental e o fumo de cigarros paira no ar. É justamente nesse meio que a filha do principal responsável da criação desse imaginário vai ao encontro dos que nele se inspiram para espalhar a sua sensualidade. A sua voz combina bem com a música dos Air, deixando assim que eles fantasiem com ela enquanto languidamente trata de os deixar extasiados com as suas interpretações. (8,5/10)

“Springtime Can Kill You” by Jolie Holland.

(2006 / Anti-)

E eis que, finalmente, Jolie Holland faz aquilo que tem vindo a ameaçar fazer e que tinha ficado aquém em disco anteriores: um álbum maior. “Springtime Can Kill You” é o seu melhor álbum e é belo. Uma obra que ajuda a definir um espaço como pertencente cada vez mais à artista em causa, independentemente do facto de trazer para a ribalta toda a nostalgia de uma cultura musical americana de um inicio do passado século para adejar harmoniosamente no universo da obra. Essa nostalgia é aqui utilizada mais como um meio do que - ao contrário dos discos anteriores de Jolie Holland -, um fim a atingir. (9/10)

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Elas... (1)

Em 2006, uma série de deslumbrantes vozes femininas foram as responsáveis pela criação de alguns dos álbuns preciosos do ano, nomeadamente: Cat Power, Charlotte Gainsbourg, Jhelisa, Joanna Newsom, Jolie Holland, Lisa Germano, Neko Case, Susanna & the Magical Orchestra e Ursula Rucker. É pena não se poder juntar a esse mote tanto o nada inspirado “Briefly & Shaking” de Anja Garbarek (que sucede o magnífico “Smiling & Waving”), como o razoável “Slappers” de Dani Siciliano; elas têm indubitavelmente belas vozes, no entanto os presentes discos, na integra, não convencem, embora se encontrem neles algumas faixas valiosas. Feist e PJ Harvey também lançaram discos em 2006, a primeira “Open Season” e a segunda “The Peel Sessions 1991 - 2004”; tratam-se de releituras ou reinterpretações daquilo que já é mais ou menos conhecido de ambas, e devido à falta de novidade propriamente dita, acabam por ser obras apenas com especial interesse para os fãs fervorosos; se bem que não se sai propriamente prejudicado pela audição de ambos.

Dos álbuns de Cat Power e de Neko Case já se falou por aqui e por aqui, respectivamente. Fica em seguida um texto sobre uma surpresa que dá pelo nome de Joanna Newsom. Das outras, e de mais algumas, ir-se-á falar em futuros textos.

“Ys” by Joanna Newsom.
(2006 / Drag City)

“Ys” é já o segundo disco de Joanna Newsom (insista-se no nome, para que ele fique bem gravado na nossa memória), que traz com ele cinco faixas com uma carga dramática encantatória que pode dificultar a vontade de cessar a sua audição. São cinco canções onde tudo parece acontecer, cinco canções inspiradas pela mitologia bretã, cinco canções que pertencem a um mundo que parece não ser o actual mas que também não poderia ser outro. Esta última característica é justamente uma das impressionantes qualidades do álbum. Isso consegue-se pela utilização de referências a contextos líricos e gráficos de cariz arcaico que se combinam com as composições folk – linguagem utilizada por excelência, onde se sente o extraordinário contributo de Van Dyke Parks – que ostentam um misto que tem tanto de aura medieval como de cultura cinematográfica e que se fazem acompanhar por uma voz ora ameninada, ora matura. Assiste-se aqui a uma demonstração muito pessoal, intimista, se assim o quisermos, de uma ideia conceptual; por alguém que no presente contexto chega até ao ouvinte como sendo muito peculiar, alguém que vive neste mundo mas que tão bem poderia ser a princesa que evoca no álbum. (9/10)